Decreto Real 463/2020, de 14 de março, que declara o ESTADO DE ALARME. UM ANO DEPOIS, ESTARÁ O ESTADO A PAGAR OS DANOS?

23/3/21

Decreto Real 463/2020, de 14 de março, que declara o ESTADO DE ALARME. UM ANO DEPOIS, ESTARÁ O ESTADO A PAGAR OS DANOS?

O dia 14 de março de 2021 assinalou um ano desde que o Governo espanhol aprovou o Real Decreto 463/2020, de 14 de março, que declara o estado de alarme para a gestão da situação de crise sanitária causada pela COVID-19.

Pela segunda vez na história da nossa recente democracia, foi decretado o estado de alarme, desta vez com o objetivo de travar as infecções por coronavírus que cresceram exponencialmente na primeira quinzena de março, depois de a Organização Mundial de Saúde ter declarado um alerta sanitário pandémico a 11 de março.

No seu preâmbulo, o Governo justificou este estado de alarme com a necessidade de fazer face à situação grave e excecional decorrente da pandemia, para o que foi necessário adotar um conjunto de medidas essenciais, proporcionadas e de carácter extraordinário, incluindo, entre outras, restrições à circulação na via pública e a suspensão da abertura ao público de estabelecimentos e comércio a retalho, com exceção da atividade declarada essencial.

Este conjunto de medidas, que na sua forma mais estrita implicava o confinamento da população, esteve em vigor até às 00:00 horas de 21 de junho de 2020, data em que terminou a sexta prorrogação deste estado de emergência.

Todos temos consciência das graves consequências económicas que o confinamento teve nas nossas empresas e negócios, que em termos macroeconómicos levou a uma queda de 21,6% do Produto Interno Bruto durante o segundo trimestre de 2020.

Foram adoptadas muitas medidas para tentar atenuar as consequências: ERTES por motivo de força maior, créditos ICO, subvenções directas ou concorrenciais dos governos locais e regionais, diferimentos de impostos; no passado dia 13 de março, foi aprovado o Real Decreto-Lei 5/2021, de 12 de março, sobre medidas extraordinárias de apoio à solvência das empresas em resposta à pandemia da COVID-19, que concebe um novo programa de ajuda aos sectores afectados; ainda assim, este conjunto de subvenções não cobre totalmente os danos causados.

Isto levanta a questão, um ano depois, de saber se as decisões tomadas pelo Governo foram ou não adequadas, e se, consequentemente, as perdas sofridas podem ser exigidas ao Estado, especialmente tendo em conta que o artigo 3.2 da Lei Orgânica 4/1981, de 1 de junho, sobre o estado de alarme, emergência e cerco, que desenvolve o artigo 116º da nossa Constituição, obriga aqueles que sofreram danos directos, ou nos seus bens ou direitos, devido a actos que não lhes são imputáveis, como resultado da aplicação dos actos e disposições adoptados durante a vigência dessa lei, de acordo com as disposições da lei, e que, no nosso direito, podem assumir duas formas, expropriação ou responsabilidade patrimonial.

Em termos gerais, por responsabilidade financeira da administração podemos entender a obrigação de indemnizar os danos sofridos pelos cidadãos no funcionamento normal ou anormal dos serviços prestados pelas administrações públicas.

Os seus princípios, derivados do reconhecimento desta obrigação pela Constituição no seu artigo 106.º, e incluídos no n.º 1 do artigo 32.º da Lei n.º 40/2015, de 1 de outubro, sobre o Regime Jurídico do Sector Público, são os seguintes

  • Existência de um facto imputável à Administração no funcionamento normal ou anormal de um serviço público.
  • Prejuízo sofrido pelos particulares nos seus bens ou direitos; ao contrário do dano, o prejuízo implica não só a existência de uma lesão patrimonial, mas também que esta seja ilícita, ou seja, que não exista uma obrigação legal de a suportar, devendo ainda ser efectiva, economicamente avaliável e individualizada.
  • Nexo de causalidade entre o acontecimento e o prejuízo causado, ou seja, a existência de factores objectivos cuja hipotética inexistência teria evitado o prejuízo.
  • Ausência de força maior, entendida como um acontecimento extraordinário e inevitável, para além de todas as circunstâncias previsíveis. Este requisito é reforçado pelo disposto no n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 40/2015, LRJAP, segundo o qual "Não são indemnizáveis os danos resultantes de acontecimentos ou circunstâncias que não pudessem ter sido previstos ou evitados de acordo com o estado dos conhecimentos da ciência ou da técnica existentes no momento da sua ocorrência, sem prejuízo da assistência ou dos benefícios económicos que a lei estabeleça para esses casos".

Cumpridos estes requisitos, a responsabilidade é promovida diretamente pelo interessado, acompanhada das provas que a sustentam, dando origem a um procedimento/processo administrativo que deve ser resolvido no prazo de seis meses. Uma vez negada expressamente a responsabilidade pela administração ou devido ao silêncio administrativo negativo, se esse prazo decorrer sem resposta, é aberta uma ação de revisão pelos Tribunais Administrativos Contenciosos, que decidirão em última instância.

O prazo para iniciar a ação é de um ano a contar da ocorrência do facto ou ato que dá origem à indemnização, embora, em caso de dano continuado, este prazo comece a contar a partir do momento em que o resultado danoso pode ser definitivamente avaliado, o que levou a jurisprudência a assinalar que o prazo de prescrição da ação de responsabilidade pecuniária neste tipo de casos só começa a correr quando os efeitos danosos do facto causal tiverem cessado.

Tendo em conta o que precede, qualquer pedido de indemnização pelos danos sofridos pelo Real Decreto 463/2020 deve ter por objetivo provar os pressupostos da responsabilidade pecuniária.

No entanto, não se trata de uma simples atividade administrativa; o facto gerador não é, em rigor, um serviço público prestado de forma anormal, nem um ato administrativo, mas antes o dano sofrido deriva diretamente de um regulamento, o Real Decreto 463/2020, que declara o estado de alarme, cuja natureza não é a de um regulamento, apesar de emanar do Governo, mas sim de uma lei, um grau normativo que já foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no STC 83/2016 (e anteriormente no ATC 7/2012), em relação ao estado de alarme decretado em 2010 devido à crise dos controladores de tráfego aéreo.

Este facto introduz outro elemento nos requisitos a ter em conta para determinar a atribuição de responsabilidade ao Estado, ou seja, se uma lei pode dar origem a responsabilidade, o que leva à questão da chamada responsabilidade patrimonial do Estado legislador.

Embora, tradicionalmente, se negasse o reconhecimento de responsabilidade financeira a lesões económicas causadas pela lei, por ser uma manifestação do princípio da soberania, esta asserção foi posteriormente qualificada pela doutrina mais recente, tendo encontrado a sua expressão legislativa nos n.ºs 3 e 4 do artigo 32.º da Lei n.º 40/2015, LRJAP, onde se distinguem as seguintes atribuições de responsabilidade:

  • Responsabilidade financeira por actos legislativos de natureza não expropriatória de direitos que os cidadãos não têm o dever legal de suportar, desde que tais actos prevejam expressamente a possibilidade de compensação.
  • Responsabilidade financeira por actos legislativos declarados contrários à Constituição espanhola. Neste caso, o prazo para a invocar começaria a contar a partir da data de publicação do acórdão que declara a inconstitucionalidade.

A estas categorias juntam-se, finalmente, os regulamentos com estatuto de lei com conteúdo materialmente expropriatório, contra os quais, se o procedimento de compensação de direitos não for determinado, o administrador pode exigir responsabilidade em alternativa ao pedido de compensação.

Exposto o regime que seria aplicável aos danos no nosso caso, não podemos negar que a questão é suficientemente complexa para afirmar que o Estado deve indemnizar em todos os casos os danos ocorridos durante o Estado de Alarme.

Como se vê, a viabilidade deste tipo de processo dependeria ou da declaração de inconstitucionalidade do Real Decreto 463/2020, ou da consideração de que se trata de um regulamento materialmente expropriatório, entendendo-se que os encerramentos decretados constituíram realmente uma expropriação de direitos, pois, caso contrário, não tendo sido estabelecido um regime específico para compensar os danos causados aos bens pelo estado de alarme, a possibilidade de reclamar uma indemnização estaria encerrada.

No que diz respeito aos processos de inconstitucionalidade, não devemos esquecer que as partes interessadas estão diretamente fechadas, uma vez que apenas o Presidente do Governo, o Provedor de Justiça, cinquenta deputados ou cinquenta senadores têm legitimidade para apresentar um recurso de inconstitucionalidade no prazo de três meses após a publicação, o que não foi feito em relação ao Decreto Real 463/2020.

Uma alternativa seria o interessado, no âmbito do processo, perante uma hipotética decisão contrária ao reconhecimento da responsabilidade financeira do Estado, em sede de fiscalização perante a jurisdição contencioso-administrativa, apresentar uma questão de inconstitucionalidade, o Tribunal aceitá-la, a questão ser suscitada perante o Tribunal Constitucional e este declarar a inconstitucionalidade da norma. Mesmo assim, a abordagem teria de passar por dois tipos de julgamentos, o da admissibilidade da questão pelo Tribunal encarregado de conhecer do processo e o da inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.

E mesmo assim, depois de toda esta confusão processual sobre a constitucionalidade ou não do Real Decreto 463/2020, poderia ainda acontecer que o Tribunal entendesse que o órgão administrativo estava obrigado a suportar o dano, ou que estamos na presença de um caso de força maior, que exclui a responsabilidade patrimonial, com o risco incluído de que nos tribunais poderia haver uma eventual condenação em custas devido à rejeição do recurso.

Sobre este último aspeto, não devemos perder de vista o Acórdão da Câmara Administrativa do Tribunal Nacional, de 15 de abril de 2013, que, na greve dos controladores aéreos de 3 a 5 de dezembro de 2010, confirmou a exclusão da responsabilidade do Ministério das Obras Públicas e da AENA por motivo de força maior, uma vez que se verificou "(...) uma situação absolutamente excecional, grave, imprevisível e inevitável, gerada de forma premeditada e voluntária pelos controladores aéreos com o objetivo de colapsar o espaço aéreo (...)".) uma situação absolutamente excecional, grave, imprevisível e inevitável, gerada de forma premeditada e voluntária pelos controladores aéreos com o objetivo de colapsar o espaço aéreo (...)".

Se esta foi a pronúncia sobre um acontecimento em que houve uma componente de voluntariedade por parte de um corpo de funcionários públicos ligados à administração do Estado, na minha opinião, será muito mais fácil para os tribunais, agora, vestir a pele de força maior a muito do que aconteceu naqueles dias de março e abril de 2020, porque, afinal, as medidas adoptadas para travar um vírus de que quase nada se sabia na altura, eram semelhantes noutros países, e o confinamento tornou-se a forma mais imediata de conter a sua propagação.

Como se vê, o grau de complexidade desta matéria é muito elevado; não se pode concluir que existe uma atribuição genérica de responsabilidade patrimonial ao Estado; é necessário localizar o facto causador do dano, verificar caso a caso qual a administração ou poder do Estado responsável e, com base nisso, reclamar pela via adequada; pelo contrário, é fácil envolvermo-nos em debates jurídicos, que não beneficiam as eventuais vítimas e dos quais não se pode retirar qualquer conclusão categórica.

Por esta razão, é essencial que o interessado que inicia este tipo de procedimento se aconselhe e conheça a complexidade e a viabilidade real do procedimento para levar a bom termo a sua ação, sob pena de investir tempo e dinheiro num procedimento motivado pela necessidade de recuperar o que se perdeu com o estado de alarme de há um ano, e do qual não há qualquer certeza quanto ao resultado.

Hortensio Santos (Advogado T&L)