Alteração do regime de responsabilidade solidária no domínio das viagens organizadas

1/3/22

Alteração do regime de responsabilidade solidária no domínio das viagens organizadas

Hoje, 1 de março de 2022, a Lei 4/2022, de 25 de fevereiro, relativa à proteção dos consumidores e utentes em situação de vulnerabilidade social e económica, foi publicada no Boletim Oficial do Estado e entrará em vigor amanhã.

Esta lei, que teve origem no Real Decreto-Lei 1/2021, de 19 de janeiro, sobre a proteção dos consumidores e utentes em situação de vulnerabilidade social e económica, inclui, entre outras novidades, uma modificação da normativa sobre viagens organizadas para eliminar o regime de responsabilidade solidária que até agora se aplicava entre as agências grossistas/organizadoras e os retalhistas/distribuidores pelo correto cumprimento dos serviços de viagem incluídos no contrato, acolhendo assim uma das principais reivindicações pelas quais o sector das agências de viagens se tem batido nos últimos anos.

O regime de solidariedade entre agências grossistas e retalhistas significa que o cliente que contrata uma viagem organizada pode exigir a responsabilidade (pedir uma indemnização por um incumprimento da viagem organizada ou uma prestação defeituosa do serviço, entre outros) a qualquer uma delas, independentemente de a agência reclamada ter ou não contribuído para o incumprimento. É certo que a lei reconhece o direito de regresso posterior contra a agência verdadeiramente incumpridora, mas isso não repara os danos causados à tesouraria da agência reembolsadora, como vimos aquando dos reembolsos ocorridos na sequência dos cancelamentos por COVID19.

Por conseguinte, as agências retalhistas (na grande maioria dos casos) foram obrigadas a indemnizar os seus clientes por estas infracções, apesar de não serem diretamente responsáveis pela prestação dos serviços contratados que compõem o pacote, mas apenas por serem o ponto de venda desses serviços.

Já sabemos que toda a legislação relativa aos consumidores e utentes tem origem nas sucessivas directivas que foram adoptadas pelas instituições comunitárias para harmonizar a legislação dos Estados-Membros da União Europeia neste domínio, também no domínio das viagens organizadas, por ser entendido como um pilar básico para a realização do mercado comum; no entanto, o princípio da solidariedade entre as agências não constava das suas orientações.

De facto, este princípio, que é mencionado na jurisprudência do Supremo Tribunal devido à "necessidade de unificar a doutrina relativa à interpretação do art. 11. 11 da Lei 21/1995 sobre as viagens organizadas conduz à doutrina de que a responsabilidade do grossista ou do organizador é solidária com a do retalhista ou da agência de viagens perante o consumidor, sem prejuízo das acções de regresso que possam existir entre eles" (Acórdão da Câmara Cível de 20 de janeiro de 2010), foi positivado na reforma da já longínqua lei de 1995, bem como no Texto Consolidado da Lei Geral de Defesa dos Consumidores e Utilizadores e outras normas complementares aprovado pelo Real Decreto 1/2007, de 16 de novembro, cuja última versão se encontrava no artigo 161.º de acordo com a redação dada pelo Real Decreto-Lei 23/2018, de 21 de dezembro, sem que houvesse uma obrigação de harmonização neste ponto.

Pois bem, este regime chega ao fim com a lei aprovada, uma vez que a reforma estabelece que as agências "apenas serão responsáveis perante o viajante pelo correto cumprimento dos serviços de viagem incluídos no contrato de acordo com as obrigações que lhes correspondam em virtude do seu âmbito de gestão da viagem organizada, independentemente de esses serviços serem realizados por elas próprias ou por outros prestadores".

Desta forma, a agência só será responsável pelas consequências que decorram do seu âmbito de gestão; no entanto, o consumidor terá o direito de apresentar as suas reclamações por incumprimento ou desempenho defeituoso relativamente aos serviços que compõem a viagem organizada, indistintamente aos organizadores ou retalhistas, que serão obrigados a informar o viajante sobre o regime de responsabilidade existente, a processar a reclamação diretamente ou através de encaminhamento para a parte adequada, bem como a informar o viajante sobre o andamento da reclamação, mesmo que esta esteja fora do seu âmbito de gestão.

O não tratamento da reclamação por parte do retalhista implica a sua responsabilidade solidária com o organizador perante o viajante pelo cumprimento das obrigações relativas às viagens organizadas que tenham sido comprometidas. Do mesmo modo, o não tratamento da reclamação por parte do organizador implica a sua responsabilidade solidária com o retalhista perante o viajante pelo cumprimento das obrigações relativas às viagens organizadas que lhe incumbem devido ao seu âmbito de gestão.

Isto significa que a lei penaliza as agências de viagens que não tratem corretamente a reclamação do viajante com o regime de responsabilidade solidária, tornando o tratamento da reclamação o verdadeiro "cerne" da solidariedade entre agências, o que é reforçado pelo facto de ser a agência que recebe a reclamação a ter de provar que agiu de forma diligente e imediata, uma vez apresentada pelo cliente.

Por outro lado, a revisão do regime de responsabilidade entre as agências envolvidas numa viagem organizada mantém intacto o direito de regresso contra a parte efetivamente responsável pelo cumprimento da obrigação decorrente da viagem organizada, bem como o direito de regresso contra terceiros que tenham contribuído para a ocorrência do facto que motivou a indemnização, a redução do preço ou o cumprimento de uma obrigação que não correspondia à agência reclamada.

Em suma, a alteração do regime de responsabilidade das agências hoje aprovada parece pôr termo a uma das principais fontes de discussão que se tem vindo a desenvolver no sector do turismo nos últimos anos.

José Luis Valencia (Advogado T&L)